O Living Preta, assinado pela arquiteta Natália Coelho para a mostra Casas Conceito 2025, é mais do que um ambiente de estar. Em 84 m², a arquiteta materializa um manifesto de amor, respeito e celebração à trajetória de Preta Gil, artista multifacetada cuja história se entrelaça com a cultura brasileira e com as raízes profundas da Bahia e do Rio de Janeiro — lugares que inspiram a materialidade e a leveza do espaço.
Natalia parte do princípio de que o living é, por excelência, o coração de uma casa. E como Preta sempre se revelou apaixonada por receber, o ambiente foi concebido como um espaço fluido e acolhedor, onde tudo convida ao encontro. O uso de materiais naturais evoca a energia solar e afetiva das cidades que moldaram Preta: o calor baiano e a descontração carioca se refletem nas palhas, nos tecidos leves, na madeira e nas cores escolhidas, compondo uma atmosfera que respira liberdade e autenticidade.
Logo na área do sofá, uma tela poderosa do artista Wisllan Lima intitula-se Ancestralidade: nela, Preta se reconhece pela primeira vez como Oxum ao se ver refletida no espelho — momento simbólico de autoaceitação e conexão com suas raízes afro-brasileiras. Na mesa de centro, uma instalação de caixas de acrílico bordadas emociona ao contar fragmentos da vida de Preta. As palavras “PRITILA” (apelido que ela usava para sua “dupla personalidade”), “E preta se tornou nome próprio” (frase que seu pai, Gilberto Gil, dizia com orgulho) e “Fê, Guê, Mê, Nê, Quê” (brincadeira de infância que marca seu encantamento ao se descobrir o centro das atenções) sintetizam aspectos centrais de sua identidade. E a expressão “MULTICOLORIDO, TUDO JUNTO E MISTURADO” costura a filosofia de mundo da artista, que via beleza na mistura — de cores, estilos, culturas e afetos.
O canto do jantar é dedicado à cura. Um imponente pendente de palha representa Omolu, orixá associado à cura, reforçando o momento delicado em que a homenagem foi idealizada: abril de 2025, quando Preta ainda lutava contra o câncer. O carrinho-bar abriga uma imagem de Iemanjá e a foto de Pedro, irmão de Preta que faleceu no dia dedicado à Rainha do Mar. Acima, três fotografias em preto e branco de Preta são bordadas por Gabriela Daltro com o degradê do pôr do sol — sua paleta favorita — revelando delicadeza e reverência.

Outro ponto de conexão espiritual está no canto das quatro poltronas, um espaço de introspecção e sincretismo. Aqui, Natalia celebra a pluralidade de fé de Preta Gil com uma obra de Alexandre Feliciano que une três figuras centrais em sua devoção: Oxum, Irmã Dulce e Nossa Senhora Aparecida. Ao destacar essas referências, a arquiteta reafirma o respeito de Preta por diferentes crenças e a beleza da convivência entre culturas e religiões, um valor que sempre permeou sua trajetória.
Outros elementos artísticos aprofundam ainda mais essa narrativa afetiva. O espelho de Oxum assinado por Gustavo Moreno e a arte com bambus de Jorge Amaro dialogam com o símbolo da deusa das águas doces, tão presente no imaginário de Preta. Um pendente exclusivo desenvolvido pela ATTMO, inspirado na colmeia das abelhas — animal que representa Oxum — coroa esse canto com delicadeza e simbolismo.

A parede de madeira traz um dos elementos mais impactantes do projeto: o espelho com asas, símbolo da libertação de Preta. Aqui, a liberdade é também cromática: o trio de cores verde, terracota e amarelo remete à frase que resume sua visão de mundo: “Para mim, o mundo sempre foi daquele jeito: multicolorido, tudo junto e misturado”, revelando a vitalidade com que ela olhava para a vida.

A homenagem, idealizada ainda em vida, foi autorizada pela própria Preta, que respondeu à arquiteta dizendo estar lisonjeada e que, se possível, faria questão de visitar o espaço pessoalmente. Sua passagem física pode não ter permitido esse encontro, mas o espírito do Living Preta transcende a ausência. Como afirma Natália Coelho, com emoção: “Tenho certeza de que ela está vendo, de onde quer que esteja, e isso enche meu coração de alegria.”
Com poesia, o Living Preta é um altar à força feminina, à ancestralidade, à liberdade de ser — e uma celebração do legado de uma mulher que ensinou a amar sem fronteiras.